6º Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo

TEXTOS

Em busca do cinema suíço

Todo janeiro, há 51 anos, a cidade de Soleura na Suíça, recebe o principal festival do país, dedicado exclusivamente ao cinema nacional: Journées de Soleure/Solothurner Filmtage/ Giornate di Soletta ou, numa tradução livre, Jornadas de Cinema de Solothurn.

 

Há seis anos, os curadores do Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo mergulham no festival colocando-se necessariamente a questão: o que caracteriza o cinema suíço? O que faz um cinema único, diferindo-o de todos os outros? Em que reside sua singularidade? Sem a pretensão de querer compreender toda a complexidade de uma cultura em oito dias e mais de 50 filmes assistidos, podemos falar de impressões.

 

Abrimos o 6º Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo com o filme Do Outro Lado do Mar, título emblemático que nos remete para uma tendência muito forte no cinema suíço: o permanente “olhar para fora”, observado em filmes que se passam em terras longínquas e abordam questões que, a princípio, não dizem respeito diretamente às da Suíça ou aos seus cenários.

 

Uma parte expressiva dos filmes são coproduções com países europeus, estendendo-se a outros continentes. Além disso, deve-se lembrar que muitos cineastas de diferentes procedências estão radicados na Suíça, e é por esse matiz de olhares que o país é visto.

Ao mesmo tempo, a indagação sobre a própria identidade (formal e de conteúdo) dá tonalidade local ao cinema suíço contemporâneo, que se denota no ritmo de documentários e ficções. Um cinema que não é histriônico nem insípido, mas enérgico, construindo sem concessões seus personagens e temas.

Não poderíamos deixar de mencionar, neste contexto, que o país sedia um dos festivais de documentários mais importantes da atualidade, Visions du Réel/Visões do Real, festival autóctone.

Mas o que buscam os cineastas suíços?

Estéticas (Em Busca de Borges, Dada), identidades (Virgem Juramentada), raízes (A  Andorinha),  deslocamentos (Do Outro Lado do Mar), famílias (Histórias Maternais), conexões (O Bloco), riscos (Mulheres Selvagens), paradoxos sociais (Muchachas), questões de gênero (Lina), magias (O Milagre de Tekir), suspenses (Sibylle), idades (Tinou), desvios (Um Homem Decente), tempos (O Tempo Nublado) e liberdades  (todos!).

Os documentários, ficções e curtas apresentados neste 6º Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo podem ajudar o espectador a encontrar algumas respostas.

Acreditamos unicamente na perspectiva de um “panorama” facilitaria bastante o trabalho de seleção, já que nele tudo cabe. Poderíamos apresentar um desfile de filmes tendo como base sua origem comum.

No entanto, a experiência e a vivência deste cinema em cinco edições, sempre guiadas pela busca de um sentido que articulasse esses trabalhos, nos levaram a explorar certos aspectos que nos parecem muito importantes e permitem abrir novas frentes de trabalho e investigação.

Destacamos neste ano as coproduções com a América Latina, na faixa especial “Sessão FILMAR”, com três filmes que foram exibidos no 17º Festival FILMAR en América Latina: Muchachas (Suíça-México), O Tempo Nublado (Suíça-Paraguai) e Histórias Maternais (Suíça-Brasil). Esse festival, que acontece anualmente em Genebra, é voltado para

o cinema latino-americano e para as coproduções da Suíça com países da América Latina, no intuito de reunir e mostrar diferentes formas de filmar na região.

Na mesma faixa, teremos o lançamento mundial do filme Em Busca de Borges, uma coprodução Brasil-Suíça dirigida pelo cineasta brasileiro Cristiano Burlan sobre o escritor argentino Jorge Luis Borges, que viveu e faleceu na cidade de Genebra, onde está enterrado. O filme foi quase todo rodado durante os sete dias em que Burlan esteve na cidade,quando participou do FILMAR, em novembro de 2015. Acreditamos que é exatamente na articulação de pensamentos diversos, nesta interseção criada pelo deslocamento de pessoas de diferentes origens, que o Panorama ganha seu melhor e mais profundo sentido. Em Busca de Borges acontece nesse espaço de criação.

Além de traçar um dos caminhos possíveis para percorrer cinema suíço, pensamos que o Panorama também deve ser um campo de reflexão e inspiração, impulsionando novas experiências entre realizadores, público e organizadores.

Tendo como ponto de partida a promoção de uma filmografia nacional, chegamos ao território mais amplo do cinema contemporâneo, em que ficamos expostos às contradições de nossa modernidade. As lentes acompanham, contemplam, ignoram ou desafiam estes tempos acelerados de mudança de paradigmas.

E ao final dessas tantas jornadas cinematográficas, concluímos que o cinema suíço é de fato suíço, mas também mexicano, albanês, turco, romeno, alemão, francês, italiano e um pouco brasileiro.

CURADORIA

Por  trás  do cartão-postal

No início do curta-metragem O Pasto, há – como indica o título – uma sucessão de imagens de vacas pastando. Apesar da paisagem árida, é uma cena idílica. Mas, então, um discreto detalhe introduz um elemento de tensão. Uma placa em uma cerca alerta: “Perigo: minas”. A partir daí, o filme é contaminado pela expectativa de uma explosão iminente.

O Pasto fornece uma metáfora adequada para este 6º Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo. Em vários de seus filmes, seja nos que se passam do lado de cá, seja nos que se passam do lado de lá da cerca, a noção de ordem e tranquilidade – que costumamos associar a esse país eu- ropeu – é abalada por um dado de perigo: um trauma ou um segredo do passado, uma desordem mental ou uma disfunção social do presente. Por mais díspares que sejam seus formatos, gêneros, narrativas e estéticas, as obras da mostra parecem unidas pela missão de arranhar a superfície do cartão-postal para revelar um cenário sempre mais complexo e perturbador.

Essa ideia de ruptura fica bem delineada em filmes de ficção rodados na Suíça como Sibylle, no qual uma arquiteta e mãe vê sua vida perfeita descarrilar após presenciar o suicídio de uma mulher muito parecida com ela, e o drama Lina, em que a personagem-título tem sua paz interrompida pela visita de um homem que diz ser seu filho. Essa noção também está presente nas muitas obras da mostra que ultrapassam as fronteiras suíças, em que o desejo de ir ao encontro do outro é interrompido por um drama familiar ou político. São os casos de Do Outro Lado do Mar, no qual um ex-fotógrafo de guerra vai à Albânia e se vê envolvido com uma garota lo- cal que teve o namorado assassinado, e A Andorinha, em que uma jovem suíça viaja ao Curdistão iraquiano em busca de suas raízes e descobre uma verdade dolorosa sobre seu pai.

Na seleção de documentários, o deslocamento geográfico e a quebra da ordem são observados de um ponto de vista pessoal, psicológico e feminino. Em O Templo Nublado, a paraguaia Arami Ullón volta a seu país para cuidar da mãe que sofre de epilepsia e Parkinson; em Muchachas, Juliana Fanjul vai ao México para revelar as histórias das emprega- das domésticas que conheceu na infância e que antes lhe pareciam invisíveis; e em Histórias Maternais, a brasileira Anouk Dominguez-Degen reflete sobre as diferenças e semelhanças entre ela e sua mãe na criação dos filhos. São filmes de realizadoras latino-americanas, mas marcados pela experiência de viver na Suíça – o que lhes permite olhar para sua família e seu país de uma forma ao mesmo tempo íntima e estrangeira.

No clássico O Terceiro Homem (1948), o personagem de Orson Welles diz uma célebre frase sobre o país homenageado por esta mostra: “Na Suíça, eles têm o amor fraternal e quinhentos anos de democracia e paz. E o que produziram? O relógio de cuco”. É uma piada sobre um cli­chê que virou ela própria um clichê. Se o genial criador de Cidadão Kane (1941) pudesse ver os filmes deste panorama, conheceria uma Suíça muito além dos estereótipos.

RICARDO CALIL

©2016Suíça Cultural News